terça-feira, 9 de julho de 2013

O sonho da princesa



Como mulher negra é difícil não me revoltar com os contos de farsas que nos contaram a vida inteira, principalmente porque nós nunca estávamos lá. Muitos podem pensar que é bobagem, assim como o sonho de ser paquita,  de ter aqueles longos cabelos loiros e o príncipe lindo que, além de amor e nobreza, faria a imensa caridade de clarear a família, salvaria nossos filhos da herança maldita do cabelo ruim, do nariz largo, da boca enorme e vulgar...
Evidentemente que a adolescente deslumbrada com os folhetins e as princesas Disney não tinha consciência de tudo isso, foi preciso me tornar adulta, mulher e negra, a custa de muita pancada da vida, do machismo e do racismo pra perceber a lavagem cerebral. Enfim, o fato é que hoje as mulheres tem perspectivas além do matrimônio, precisam de mais do que somente amor e filhos para se sentirem realizadas. E a mídia, como bons capitalistas, tem entendido essa mudança e oferece, ainda que em doses homeopáticas, novas leituras das mesmas histórias ou histórias novas com conteúdo mais atualizado.
Na verdade são mulheres mais atualizadas. Vejo em alguns contos de fadas recentes possibilidades de pensar a grande questão da mulher moderna: como ser mulher, feminina e romântica e, ao mesmo tempo, independente, com personalidade, sonhos, desejos e vontade própria??
A primeira princesa negra, Tiana de A princesa e o sapo, vem cheia de problemas, além dos cabelos alisados, passa a maior parte do filme como uma charmosa sapinha verde, vivendo aventuras com o príncipe Naveen, jovem fútil e sem maiores objetivos na vida, além de dançar e cantar nas ruas do berço do jazz, Nova Orleans, onde se passa a história, típico do que se espera de um homem negro: um vadio, nobre, rico, porém vadio! Tudo bem que ele não é tão negro assim, mas falaremos sobre isso em outra ocasião... O apagamento ou branqueamento de nossos traços na mídia merece um espaço maior de reflexão. 
O fato é que a força do sonho de Tiana muda o rapaz que, junto de sua mulher negra, reconstrói sua vida, se torna um homem responsável e sério. Tem mais uma coisa, Tiana não é uma princesa de verdade, ela é uma mulher que trabalha e muito para realizar o sonho que aprendeu a sonhar com o pai. Isso poderia ser um problema, pois novamente a nobreza nos é negada. Porém vejo mais como uma amostra do tipo de mulher que somos, mulheres de verdade, com sonhos reais e difíceis de realizar, mulheres que lutam pelo que acreditam, mas também amam e querem ser amadas, também são prendadas e boas donas de casa, boas filhas e, provavelmente, boas mães, mulheres que podem ser vistas em todas as esquinas das periferias pelo mundo afora. 
Não quero ver crianças e jovens negras caindo nos contos de farsas que contam para meninas brancas, não vejo vantagem em acreditar que o casamento é a única forma de ser realizada, que a fragilidade feminina é algo indiscutível e, por isso, precisamos de um príncipe valente que nos salve sempre, pois não podemos viver sem essa proteção. Não quero ver nossas crianças sonhando com uma nobreza que amansa o povo diante das desigualdades, faz casamentos e festas suntuosas enquanto seus criados, aliados nos momentos de luta contra o vilão malvado, estão na cozinha ou vivendo em cabanas humildes, felizes por manter as hierarquias e desigualdades, mas agora com um bonito casal à frente de tudo isso. 
Prefiro que as meninas negras sonhem em ser independentes, em realizar grandes coisas e um dia percebam as injustiças desse mundo e lutem contra elas, percebam porque é tão difícil para algumas e tão fácil para outras, porque Charlotte pode jogar o sonho de Tiana em suas mãos, como se não fosse nada, como quem compra um pirulito e Tiana tem que viver esperando viver mais para continuar sonhando.



sábado, 6 de julho de 2013

Brincadeiras à parte...


Interessante a polêmica... Ironia é um recurso difícil, pois a maioria das pessoas não tem condições de compreender e outras tantas não sabem usar. Entendi os objetivos de Paulo Henrique Amorim, seria uma boa investida, um argumento contundente e ironicamente cortante, como alegou sua advogada. Porém ele desconsiderou algo fundamental em qualquer discurso e ainda mais determinante no caso das ironias: o contexto.
Atacar um reacinha da Rede Globo é sempre agradável e quanto mais humilhado, mais nos regozijamos com a exposição pública de nosso inimigo declarado. Porém Heraldo Pereira não é apenas mais um reacinha, ele também é “negro e de origem humilde”. E PHA escolheu exatamente essas características para atacá-lo, expor sua condição social e racial, como determinante para sua ascensão social e suas limitações políticas.
A afirmação de que um negro que atua sempre em defesa dos interesses da elite branca que, historicamente o oprime, é um “negro de alma branca” seria a melhor escolha de termos, uma vez que ironiza ao mesmo tempo o próprio negro que desconhece/ignora/rejeita/odeia/despreza/teme...  suas origens e a frase célebre largamente usada para elogiar o negro que foge à regra da criminalidade, incompetência, violência, etc típica de seus irmãos, o negro de alma branca, ou seja, o negro honesto, limpo, competente, calmo, etc.
De fato mataria-se dois coelhos com uma cajadada só e o resultado seria uma profusão de risos e alma lavada das sandices do reacinha despolitizado. Porém tal afirmação veio de um representante branco de outro grande meio de comunicação e ser defensor de negros,  cotas e políticas afirmativas não o tira de sua condição privilegiada de homem, branco, heterossexual e rico. Ou seja, um opressor em potencial de qualquer minoria, ainda que tenha escolhido defender esses grupos, sua condição lhe assegura que isso seja feito da maneira que ele achar melhor, pois sua escolha magnânima de “abrir mão de oprimir” para “proteger” o torna totalmente invulnerável. 
Como diria Carlos Moore racismo envolve poder, condições de oprimir, por isso a frase na boca de um outro negro garantiria a ironia e seria altamente politizada, mas na boca de um homem branco e empoderado torna-se uma ofensa desnecessária e baixa contra um negro que, mesmo longe de sua origem humilde, não pode apagar os estigmas eternos de sua cor. No fim das contas foi mais um duelo dos gigantes da TV aberta e venceu o mais forte, mas nesse duelo o povo negro também teve seus louros e não podemos abrir mão disso.